Sorvete infinito
Em uma infância onde sorvete de pote era luxo, picolé vez ou outra e Banana Split extravagância, as sorveterias self-service eram o paraíso da molecada
A cena sempre se repetia, ano após ano: era chegar em Penápolis (SP), descer do carro e, enquanto meus pais descarregavam as malas, os quatro filhos pequenos já começavam a atazaná-los aos gritos de “Paaaaaai, vamos na Cristal. Mãaaae, que horas a gente vai na Cristal?”.
Cristal era o nome de uma das sorveterias mais populares da cidade, pelo menos pra gente. E ali, na virada dos anos 80 pros 90, ganhava popularidade a sorveteria que sabia executar com mais capricho os clássicos Colegial, Banana Split e o Vaca Preta, uma mistura "saudável" de sorvete de flocos inundado por meia garrafinha de Coca-Cola. Mas era ele, o Ula Ula, o X-TUDO dos sorvetes, que deixava a molecada maluca, tamanha a ostentação de diversas bolas de sorvete perfeitamente acomodadas em uma canoa de abacaxi, coberta por todo o tipo de confeito disponível na sorveteria.
As idas à Cristal perduraram por anos. Até que, em um belo dia, ao chegar na cidade, uma de minhas primas veio avisar: “Gente, a Cristal agora é self service”. Eu, criança de tudo, não processei a informação na hora. A ficha só foi cair quando meus pais abriram a porta da Belina, e os filhos saíram em disparada, rumo ao balcão de sorvete infinito.
Seo Luiz e Dona Conceição, comovidos pela felicidade dos pimpolhos, cometeram o erro de nos deixar escolher sorvete à vontade. Resultado? Castelos de sorvete, sabores variados, montanhas de chantili, infinitos canudinhos de waffle, granulados e coberturas diversas, e uma conta a pagar tão absurda que, até hoje, quase 35 anos depois, meus pais fazem questão de relembrar o prejuízo.
A partir desse dia, a tática mudou. Cada filho poderia escolher dois sabores, o que rendia um potão com umas 8 bolas de sorvete, para comer em casa. A casquinha do sorvete era comprada de uma vizinha, que para tirar um renda extra, assava umas casquinhas pra lá de saborosas.
E sorvete é coisa séria aqui na família Dias. Por conta do plano de carreira do meu pai, nós sempre mudávamos de cidade. E várias vezes ele precisava iniciar o trabalho em uma nova cidade, enquanto a gente ainda morava em outra.
E numa dessas mudanças, ele acabou morando temporariamente em um apartamento que ficava em cima de uma sorveteria, ou melhor, uma pequena fábrica de sorvetes, a Sorvetes Napoli, em São José dos Campos (SP). Eram mais de oito horas de viagem de carro de lá até Cravinhos (SP), mas meu pai fazia questão de trazer dois isopores de 1 litro, um com sorvete de uva e o outro de Romeu e Julieta, que levava requeijão na composição e uns nacos graúdos de goiabada.
Muitos anos depois, já nos primeiros anos de faculdade, uma simples busca por uma sorveteria que ainda servisse uma banana-split em Presidente Prudente (SP), quase vira uma grande confusão. Uma das mais tradicionais sorveterias da cidade se sentiu extremamente ofendida com o nosso pedido, achando que a nossa vontade de matar essa vontade nostálgica era na verdade uma grande piada.
Azar o deles, partimos dali para a Sorveteria Água na Boca, que além de exibir com orgulho os infinitos sabores nos potes dentro dos freezers, também gostava de ostentar no cardápio os clássicos de sempre, sempre bem executados. Mas o carro chefe deles é essa montanha de sorvete de morango da foto, o Sangue de Dragão, que leva morango picado, calda de morango e muito, mas muito chantili.
Aqui em São Paulo, apesar de existir excelentes sorveterias como as Damp e Soroko, e outras mais pomposas, ou melhor, artesanais, como a Frida & Mina, Froid, Walnuts e Sorveteria do Centro, ainda não consegui encontrar aquela sorveteria que fica quase esquecida no bairro, mas que ao ver uma mesa ser ocupada por mais de 6 pessoas, nem titubeia em oferecer um ULA ULA, para matar a forme de sorvete de todos.
Se você souber onde existe uma dessas, por favor, deixe aí nos comentários, criança doente em casa. :P
O Coifa é um boletim com histórias de cozinha. Curtiu o Coifa? Assine e indique pros amigos :)
Essas sorveterias do interior são uma grande tradição nacional. Ontem mesmo fiquei chateado por que passei na frente de uma que fechou (e marcou época tanto na fase das taças quanto no self service).
Quando vou visitar a família da minha esposa no Paraná, tem sempre uma parada para comer torta de sorvete que é uma tradição em Nova Londrina e Marilena.
Olha, incrível os nomes de sorveterias do interior. Em Patos de Minas(MG) a preferida da infância chamava Sideral e sangue de dragão é um sabor que existe até hoje. Em SP, lembro que passar por uma sorveteria com pinta de que serve banana split sem ironia, fica(ou ficava) do lado do Halim com um nome sugestivo: Alaska.