Todo cozinheiro sabe a importância do “mise en place", esse termo francês que significa “colocar no lugar". Ler toda a receita, deixar os ingredientes separados e cortados, panelas e utensílios em seus devidos lugares, é o que garante que você não vai “nadar na cozinha” e deixar estômagos alheios roncando, ou queimar aquela cebola que ficou esquecida na manteiga enquanto você cortava os tomates às pressas para o seu molho.
Preparar uma viagem não é diferente. Você faz a lista de lugares que quer visitar, restaurantes que gostaria de conhecer, quais ônibus, trens ou metrô pegar. Mas, por mais organizado que você seja, o imprevisível sempre dá as caras.
Na cozinha, se você der muita sorte, aquela sua cebola queimada pode dar um belo toque defumado no seu molho. Já nas viagens, esse ingrediente bagunceiro chamado imprevisível pode te garantir boas surpresas.
Foi por culpa dele que me apaixonei por sanduíches de abacate com queijo. Uma manutenção nos ascensores de Valparaíso, no Chile, me fez queimar as pernas de tanta subida que encarei até chegar na La Sebastiana, uma das casas de Pablo Neruda. As energias foram recarregadas com um pão francês com avocado e duas fatias de queijo, em uma vendinha dos arredores. Virei fã.
Os lugares descobertos por acidente são muitos, mas tentei puxar na memória alguns que lembro até hoje, e que gostaria muito de voltar a visitar.
Depois de muito tempo guardando dinheiro, quebrei o cofrinho para tão esperada viagem à Europa. E foi na cidade de Gent, na Bélgica, que o perrengue se transformou em surpresa.
(A vitrine de queijos de leite cru do Lousbergmarkt, na cidade de Gent, Bélgica)
Me perdi pelas ruas dos bairros afastados do centro e dei de cara um galpão repleto de preciosidades gastronômicas. Era o Lousbergmarkt, localizado às margens do Rio Visserijaart, bem ao lado do agradável parque Speeltuin. Sidras de maçã, queijos, geleias, pães, frutas e verduras, tudo fresquinho, produzido ali na região. Difícil foi voltar de barriga - e sacola - cheia até a estação de trem.
Agora, a memória que mais guardo com carinho é da última viagem à Buenos Aires, na Argentina. Carregado de malas, achei que seria uma boa ideia caminhar 10 quarteirões do "Subte Palermo” até o hotel.
(Claudio, levemente contrariado por eu ter tirado essa foto do La Leyenda)
Entre falhar miseravelmente em alinhar as rodinhas da bagagem pelas calçadas da Calle Güemes, e fingir que meu braço não estava desistindo do meu corpo, eis que surge o La Leyenda no caminho, uma portinha despretensiosa na lateral do “Mercado Guemes".
(O cardápio do La Leyenda, que muda de acordo com o humor de Claudio)
Entre livros antigos, garrafas vazias empoeiradas e outras sucatas, lá estava Claudio, comandando sua parrilla tranquilamente, enquanto “Stratocaster Boogie” do Pappo's Blue tocava em alto e bom som. A chapa ali é democrática, atende a carnívoros e vegetarianos, e o preço é justíssimo. Acabou virando a minha parada diária para comer legumes braseados, tomar um “Kalimotxo” (drinque de vinho tinto com Coca-Cola) e conversar sobre Memphis La Blusera e outras bandas clássicas do rock argentino com Claudio. Ah, ele não gosta que peçam músicas, e nem de Soda Stereo.
Ainda na Argentina, outro cálculo errado de tempo de caminhada foi responsável por chegar em Palermo Soho perto do fechamento dos restaurantes.
O jeito foi escolher o local mais agradável e arriscar. Foi assim que resolvi entrar no Pan Et Vin, na Calle Gorriti, 5132.
(Desculpem pela foto, provavelmente foi feita após muito pão, queijo e vinho)
Ohad, o chef israelente que comanda o lugar ao lado da sommelier argentina Eleonora, logo avisou: fechamos em meia hora. Abri um sorriso, falei que tudo bem e a degustação dos mais deliciosos vinhos de pequenos produtores argentinos se iniciou. O gelo só foi quebrado quando perguntei se ele havia colocado de propósito “Half Full Glass of Wine”, do Tame Impala, pra tocar. O papo engrenou e a meia hora acabou virando quase duas horas ali na loja, em uma conversa sobre música, pães de fermentação natural e cervejas.
Por isso, caro leitor, às vezes o inesperado pode ser aquele tempero especial em sua viagem, aquela memória que gruda mais que a casquinha de arroz torrado no fundo da panela, que se você souber aproveitar, fica uma delícia.
Diz aí: qual foi aquele restaurante, bar, boteco ou bodega que você descobriu por acidente?
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Saudade demais de se perder e achar coisas incríveis (lembrei de uma pizza de lagosta em Trinidad, Cuba, ou de ir parar dentro do tanque da KCBC, em Nova York, com um certo Bruno Dias).