New ramens on the block
Caldos mais leves, estilos peculiares e invenções regionais ‒ o mundo do macarrão ensopado no Japão expande-se rumo ao infinito e além
Por Tiago Amaral, correspondente do Coifa em Tóquio, Japão
Tem mais ou menos 14 anos desde que eu escrevi um texto chamado "A caça ao lámen perfeito" para o caderno Paladar, do Estadão, na época em que morava no Japão como estudante. Me lembro de comprar um livrinho com as "ramen-ya" ‒ casas de lámen ‒ mais famosas de Tóquio e sair provando tantas tigelas de macarrão ensopado quanto conseguia, assim na louca, uns vários dias encarando umas muitas filas. A miséria que recebi pelo trabalho foi toda gasta na odisséia. Não sei bem o que contei no texto, que agora se encontra protegido por um paywall chato que me impede de ler o que eu mesmo escrevi.
Mas recordo que, lá pelos idos de 2010, os lámens obedeciam a uma classificação até que simples: pelo caldo, poderia ser tonkotsu (com um pegada forte de gordura de porco), shio (temperado só com sal), shoyu (reforçado pelo próprio) e missô (leva pasta de soja). Quanto ao tipo, mergulhado na sopa ou tipo tsukemen (com a sopa à parte) . Grosso modo, era isso.
Quando voltei a Tóquio dois anos atrás, dessa vez para trabalhar, a princípio não notei nada de muito diferente no mundo do lámen. Normal: para um estrangeiro, as mudanças no Japão costumam ser sutis demais para serem captadas numa olhada rápida. O primeiro susto, talvez, foi quando, já matada a saudade do trivial, resolvi procurar um lámen mais bem cotado, do tipo que faz você pegar um trem com o especial objetivo de conhecê-lo. Esperava aquele caldo poderoso, cheio de umami, de corpo, de sabores tão espessos quanto a pele do Godzilla. Quê?
Pra começar, o caldo não tinha gosto de porco. Ao contrário, era leve, aromático, fácil de tomar. Delicado, com jeito daquela sopa francesa…Bouillabasse. Em resumo, é um negócio que daria muito bem pra servir à beira da praia, vendo o ventinho balançando os coqueiros. Porque, sim, o caldo do lámen era feito de frutos do mar. O macarrão, fininho, mal dava para morder.
No topo, em vez daquela rodela de porco que derrete na boca, o chashu era feito de um imaculado peito de frango cozido lentamente, suculento mas, naturalmente, com menos sabor. Ao meu lado, garotas e garotos de roupas em tons pasteis, usando avental de papel para evitar sujá-las. Onde estavam os grisalhos e carecas engravatados, chupando sonoramente o macarrão nos minutos contadinhos do almoço?
Pois é isso: os lámens dos anos recentes são leves, perfumados, feitos à base de frutos do mar ou frango. Por exemplo, uma rede chamada Afuri, que tem várias lojas na região de Tóquio (e até uma em Lisboa!), ganhou fama por aplicar a frutinha cítrica yuzu ao caldo e até mesmo criar uma versão vegana do prato, bem colorida e cheia de legumes. A pimenta está liberada, e versões picantes costumam figurar entre as opções. Basicamente, porque pimenta acrescenta sabor sem somar as calorias infelizes que costumavam afastar o público feminino do prato ‒ ao menos aqui no Japão.
Mas sabe que, seja por apego sentimental ou o que for, continuo gostando mais mesmo é dos lámens de antes, que continuam bem firmes e bem fortes. A diferença é que agora são mais frequentemente agrupados em estilos, e cada restaurante especializa-se em apenas um deles. Tem o ie-kei, estilo da casa, nascido em Yokohama. Esse é o bom e velho tonkotsu, cheio de sabor, com reforço do shoyu no caldo. A diferença é que, além do porco, a sopa leva frango também na composição, e a gordura da ave acrescenta à cada bocada uma rota alternativa de sabor, como uma estrada que se bifurca (mas você trafega nas duas ao mesmo tempo).
O macarrão é grosso e bom de mastigar. Outra particularidade do ie-kei é que a intensidade do sabor, o nível de gordura de frango, o grau de cozimento do macarrão e outros aspectos podem ser ajustados ao gosto do cliente.
Famoso pelo volume, o jiro-kei, originário do bairro de Mita, em Tóquio, traz uma pegadinha para os desentendidos: o tamanho "normal" é o grande, e o "pequeno" é o normal. As verduras no topo, tipo repolho e broto de feijão, formam uma montanha! Alho cru picado pode ser adicionado para os corajosos. Aliás, coragem é necessária também para encarar os atendentes do jiro-kei.
Eles são diretos, quase grosseiros, e a pergunta sobre a quantidade desejada de verduras e de alho no topo é proferida com tanta rapidez que pode ser confundida com um resmungo. Isso intimida aqueles que entram no local sem saber o que estão fazendo ‒ e cria aquela sensação de superioridade entre os que fazem parte do clubinho de fãs do jiro-kei e dominam os seus códigos.
Os estilos não param por aqui. Tem o taishoken, nascido no bairro de Ikebukuro, em Tóquio, e ainda os não-toquiotas, como o estilo de Hakata (porco na veia!), o de Kyoto (mais leve e elegante), o de Kumamoto (leva o misterioso óleo negro de alho) e o de Hokkaido (com missô e manteiga no caldo, além de milho no topo), só para ficar em alguns exemplos. Outro dia provei o da província de Tokushima, na ilha de Shikoku, que leva carne de boi fatiada e gema de ovo cru. Nada mau.
Vale mencionar, ainda, os lámens sem caldo, chamados de abura soba (macarrão ao óleo) ou maze soba (macarrão misturado). Provocaram o coup d'Etat dos toppings, os ingredientes adicionados no topo do lámen, que tomaram o posto de líderes do prato. Porco braseado em cubos, kimchi, gema de ovo, molho de carne apimentado, coentro, queijo parmesão (!)...O objetivo é desfechar um combo de umami (pensando agora, acho que carne seca brasileira desfiada iria muito bem na mistura).
Ou seja, hoje em dia a caça ao lámen perfeito pediria pelo menos uns meses ‒ mas já ouvi falar de quem leve anos e até a vida toda se dedicando à coisa. E o mundo desse prato de origem chinesa continua a se expandir rumo ao infinito e além, como diria Buzz Lightyear. Às vezes dá até saudade da época em que a escolha era só com base em dois ou três critérios.
Pero bueno, se você vai visitar o Japão e deseja conhecer, numa tacada só, um pouco do melhor que o país tem a oferecer, a dica é a Ramen Street, no subterrâneo da gigantesca estação de Tóquio. Vários restaurantes famosos têm filiais ali, e o grande número de turistas estrangeiros torna tudo mais acessível para quem não se comunica em japonês. Só se prepare para as filas, inevitáveis na maior parte do dia.
Aqui tem um Guia da Ramen Street na estação de Tóquio. Já deixa guardado aí para a sua próxima viagem.
Para saber mais sobre os estilos de lámen (em japonês, mas vale usar o tradutor automático):
Tiago Amaral é jornalista, já escreveu para a revista Quatro Rodas, Paladar Estadão e atualmente mora e trabalha em Tóqui, Japão.
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