Na Índia, encontrei o antídoto para o caos (e não é yoga!)
Com os outros sentidos sob ataque, é no paladar que está o refúgio para respirar, conversar e contemplar a vida
Por Tiago Amaral, correspondente internacional do Coifa, direto da Índia.
Criado para promover o turismo estrangeiro, o slogan: "Incredible India" não poderia estar mais correto. "Incrível!" é a palavra que salta da boca em cada esquina do país que, na verdade, está mais para um continente abarrotado de pessoas, histórias e tradições.
Não dá para dizer que seja exatamente agradável andar pelas ruas indianas ‒ a sensação é de estar eternamente num jogo do Mario Bros, cheias dos mais diversos obstáculos, como tuk-tuks buzinando, carros avançando, fios soltos roçando, animais entrepassando e muitos, muitos seres humanos fazendo de tudo um pouco. Sobreviver requer mais que cogumelos mágicos. É preciso recorrer à estratégia mais indiana de todas: comer e beber.
No meio do caos, as paradinhas para se abastecer ao longo do dia são um refúgio de prazer e uma oportunidade conexão com o outro. Na viagem de três semanas que fiz ao país de Gandhi, aprendi a estratégia e utilizei o tempo todo nas cidades que percorri.
A jornada começou em Chennai, capital de Tamil Nadu, estado que fica de frente para o Sri Lanka. À beira do mar, antes conhecida pelo nome de Madras, é o grande ponto de resistência à dominação cultural do norte. No campo culinário, em vez dos curries espessos e pães achatados que fazem a fama da comida indiana mundo afora, predominam sabores mais leves, refrescantes e apimentados. Mas os preferidos são justamente os petiscos que servem de justificativa para momentos de respiro no dia a dia.
O mais famoso é a dosa, crepe de massa fermentada de arroz e lentilhas. Numa das manhãs em Chennai, depois de rodar mais de meia hora atrás de um café da manhã amigável, encontrei uma portinha com lugar para sentar. Pedi a masala dosa, a primeira opção do cardápio pregado na parede.

O prazer começou quando, logo à minha frente, o cozinheiro derramou um punhado de massa sobre o centro da chapa de ferro quente e, com ajuda de uma espátula, expandiu-a sobre a superfície num movimento circular. Deixou ali até estar bem dourada. Em seguida, com a dosa já dobrada sobre uma folha de bananeira, esparramou pelas laterais chutney de coco, bem branquinho, e sambar de tamarindo, alaranjado, ambos com a consistência de um suco grosso.
Enquanto respirava o aroma de ghee pincelado ao final, quebrei com os dedos a massa crocante e passei a parte interna, esponjosa, nos molhos. Lá pelas tantas, brotou da barriga da dosa o recheio de batatas, pintado com açafrão-da-terra e cheio de sardas pretas, as sementes de papoula.
Leva manteiga, ovos ou leite na composição? Não. O sabor da massa vem da fermentação. Diz-se que o clima quente e úmido do sul da Índia dá o timing exato para conseguir a textura e o sabor ideais.
Faltou contar que o cozinheiro lançou no meu prato um donut salgado, crocante por fora e com uma boa quantidade de massa por dentro para mergulhar no que restou do chutney e do sambar. Vada, se chama, e eu adoro esse nome pela semelhança sonora ‒ apenas por coincidência ‒ com "Veda", texto sagrado do hinduísmo.
Tanto a dosa quanto a vada fazem parte do que os indianos chamam de "tiffin", palavra em inglês antigo para "lanche". As pausas preciosas para saboreá-lo podem ser em barracas na rua, em portinhas, como a que eu escolhi, ou nos tiffin centers, que são maiores e oferecem mais variedades de sabores. Outro membro importante do tiffin é o idli, disco branco fofinho, também feito de arroz e lentilha, perfeito para absorver os sabores e as cores dos molhos. Não é crocante, mas é aconchegante.
Risotinho indiano
Um elemento fundamental das pausas para comer na Índia é a interação com outras pessoas. Seja onde for, você está sempre rodeado de pessoas e, não raramente, divide o espaço com desconhecidos. Daí nascem conversas, que costumar durar tanto quanto um copinho de chai, o famoso chá com leite e especiariais. Ou, no sul do país, o filter coffee, café filtrado com leite e melaço. Idêntico ao de padaria brasileiro, bem quente e docinho.
Foi numa vendinha de chai que o dono, um homem de meia idade sorridente, feliz por receber um estrangeiro, me indicou um dos melhores pratos da viagem. Estava em Bengaluru (antes chamada de Bangalore), segundo ponto da jornada, conhecida como Vale do Silício indiano.

Já passava do meio-dia e eu buscava um almoço leve, rápido, antes de ingressar no fabuloso museu Indian Music Experience. "Prova o puliyogare", ele me disse, para em seguida dizer que o chai seria por conta da casa. Encontrei o prato no Mysore Thatte Idly Point, um "buraco na parede", como dizem em inglês, a alguns minutos da venda. O puliyogare é um risotinho de arroz vermelho e azedinho por força do tamarindo, aromatizado com temperos como sementes de mostarda, folhas de curry e pimenta seca, além de um pouco de amendoim. Tinha um toque adocicado ‒ típico de Bengaluru ‒ que me conquistou.

Mais cremoso é o khara bath, ícone da capital do TI. Provei-o no Hotel Sanman, que, apesar do nome, tinha jeitão de refeitório de escola, com direito a tio da merenda e tudo. Feito de semolina cozida com ghee, ervilhas e especiarias, servido com chutney de coco, o khara bath oferece o equilíbrio perfeito entre conforto e aventura. Porque não te dá uma porrada no paladar e traz a dose certa de especiarias. Ah, e "bath" não tem nada a ver com banho. É a palavra em kannada, língua local de Bengaluru, para pratos de arroz ou lentilha.
A capital da culinária
Sem grandes atrativos turísticos, a cidade de Indore, no estado central de Madiya Pradesh, está empreendendo esforços para se tornar a capital culinária da Índia. Seus mais de 2 milhões de habitantes orgulham-se das comidas de rua que atraem turistas do país todo ‒ além do título de cidade mais limpa da Índia desde 2017.

Limpa, mas não livre do caos. Surge como um oasis na muvuca do centro da cidade a piscinona de kesar milk, leite com açafrão, colocada na calçada da loja Laxminarayan Doodhwala. Um homem mexe quase sem parar os 110 litros de bebida que atraem dezenas de clientes após escurecer, sobretudo no inverno, quando os cerca de 15 graus centígrados ‒ frio para os padrões locais ‒ pedem uma bebida quentinha.
Bem cremoso e com uma espuma no topo, me lembrou caldo de canjica acrescido do gostinho do açafrão.
Para comer, o bhutte ka kiss é um dos petiscos mais famosos do Sarafa Bazar, mercado de joias que, todas as noites, se torna nada menos que o maior centro de comida de rua do país.

Lembra o cuscuz nordestino, mas mais molhadinho e temperado, com coentro e coco ralado no topo. Poderia facilmente participar das nossas festas de São João.

Compete lado a lado com delícias "importadas" das ruas de Mumbai, como o vada pav, apelidado de "hambúrguer indiano", feito com um disco frito de batata, sem carne, e a masala cheese paneer dosa, uma versão repaginada do clássico com paneer, o queijo branco indiano, e queijo europeu ralado. Não seria esquisito chamá-lo de "burrito indiano".
Mundo vegetariano
Talvez você tenha reparado: todos os pratos mencionados até agora são vegetarianos. Principalmente no sul da Índia, as receitas sem carne são a maioria. Quando se trata de comida de rua, é quase cem por centro. Assim como o álcool, o consumo de carne entre os seguidores da fé hinduísta, mesmo que não praticantes, traz algo de pecaminoso. Se o churrasquinho com cerveja ainda é o refúgio de muitos brasileiros e às vezes até símbolo de masculinidade, para boa parte dos indianos a combinação seria motivo de perder o sono.
Para os não-vegetarianos como eu, pode parecer pouco convidativa a ideia de reunir os amigos para comer sanduíche de verduras, couve-flor empanada e um copo de chá ou um suco. Mas constatei, ao longo de diversas provas, que essa é a melhor combinação na Índia. A carne, quando disponível, costuma ser de frango. Mas há pouca diferença entre a ave e, digamos, a couve-flor ‒ tanto no sabor quanto na consistência.
Dia desses, encontrei no livro de viagem Chai Chai, do jornalista indiano Bishwanath Ghosh, uma possível explicação. Depois de mandar um moleque comprar arroz com carneiro para comer no quarto do hotel, numa cidadezinha qualquer da Ìndia, ele relata:
"Eu só consigo consumir carne depois de algumas doses [de álcool], quando fico anestesiado para o fato de que estou comendo uma criatura viva que acabou de ser morta. Quando estou sóbrio, eu resisto a comer carne, a menos que esteja tão bem preparada que eu não consiga dizer se é carne de carneiro ou jaca."
A existência de uma nação no mundo em grande parte vegetariana ‒ e justamente a mais populosa de todas! ‒ me chama a atenção há muito tempo. Trata-se de um reflexo da ligação intensa entre a comida e a religião na Índia desde os tempos antigos. Esse é um assunto complexo, que pediria muitos parágrafos para abordar. Mas vou me limitar a deixar aqui a mera impressão pessoal de que a vida indiana está toda pontuada pela comida, inclusive no território espiritual. Talvez por isso seja possível encontrá-la em todos os espaços do dia a dia.
Para o visitante que não é parte da cultura indiana, resta aproveitar o aspecto bem prático de usar as muitas pausas para comer e beber como abrigo mas também como ponto ideal para contemplar as cenas de "Onde está Wally?" que se desvelam uma atrás das outra nos espaços públicos da Índia. Até que cedo ou tarde alguém vai se aproximar e perguntar "de onde você vem?", "é casado?", "onde trabalha?" e pronto, uma memória de viagem, daquelas mais persistentes, estará sob fabricação.
Tiago Amaral é jornalista, já escreveu para a revista Quatro Rodas, Paladar Estadão e atualmente mora e trabalha em Tóquio, Japão.
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Dosa 💙💙💙
a sorte foi ter lido depois do almoço, senão eu com certeza ia sair atrás de algum restaurante indiano hahaha